Atilio Boron,
Publicado pela Rede de Intelectuais, Artistas e Movimentos Sociais em Defesa da Humanidade (19/10/2025),
21/10/2025

Desde o início deste século, sucessivos governos dos Estados Unidos atacaram com força os chamados “Estados reformistas”, incluindo nessa categoria ambígua aqueles que criticavam o arcabouço jurídico e institucional herdado do pós-guerra e tentavam criar um novo, mais condizente com a atual configuração do poder mundial. Frequentemente, eram acusados, de forma indireta, de serem “Estados párias” por supostamente violarem — ou pretenderem violar — os preceitos do chamado “ordem mundial baseada em regras”. Essa era a expressão usada pelo imperialismo para se referir ao conjunto de normas e instituições internacionais criadas por Washington, com a ajuda de seus peões europeus, no final da Segunda Guerra Mundial e nos anos seguintes.
Mais recentemente, especialistas e porta-vozes do governo norte-americano introduziram uma distinção entre os “reformistas”: havia aqueles que queriam, mas não tinham capacidade para criar uma nova ordem internacional — principalmente Rússia e Irã —, e havia a China, que, segundo eles, “queria e podia” reformar profundamente a “ordem mundial baseada em regras”, tornando-se, assim, o inimigo a ser derrotado. Poucos se perguntavam quem havia criado essas regras e a quem elas beneficiavam, mas era evidente que serviam à perpetuação da supremacia do Ocidente coletivo e de seu líder incontestável, os Estados Unidos. Diversos presidentes americanos defenderam ferrenhamente o velho sistema — Bill Clinton, os Bush (pai e filho), Joe Biden e Donald Trump em seu primeiro mandato. Mas foi Barack Obama quem o expressou com maior sinceridade, reconhecendo que essa ordem “serviu muito bem aos interesses nacionais dos Estados Unidos” e, ao mesmo tempo, à estabilidade e à paz mundiais.
O problema é que, atualmente, essa ordem atravessa uma crise terminal, pois já não reflete a correlação global de forças entre um hegemônico Estados Unidos em processo irreversível de declínio e um Sul Global que se “desocidentaliza” rapidamente, emergindo como uma poderosa combinação de força econômica, avanço tecnológico, peso diplomático e também militar. A falta de correspondência entre o “sistema internacional” — o conjunto de atores estatais, não estatais e supranacionais — e a superestrutura legal e institucional é evidente. Essa disjunção acelerou-se desde o início do século, após dissipar-se a ilusão americana de que o século XXI seria “o século dos Estados Unidos” (The American Century), crença compartilhada por parte da academia e da mídia norte-americana, e, na América Latina, por não poucos internacionalistas influenciados pela academia dos EUA.
As queixas e protestos contra as injustiças da ordem colonial dirigida por Washington multiplicam-se. É consenso que as Nações Unidas precisam ser refundadas sobre novas bases e que o Conselho de Segurança já não tem capacidade de lidar com os conflitos contemporâneos. O poder de veto ainda exercido pelo Reino Unido e pela França, vencedores da Segunda Guerra Mundial, é um anacronismo e um insulto à razão, pois ambos perderam relevância até mesmo em seus próprios entornos geopolíticos. Também é absurdo que entre os cinco países com poder de veto não haja nenhum da América Latina, do Caribe ou da África. Igualmente inaceitável é o poder limitado da Assembleia Geral, cujas decisões não são vinculantes.
Outras instituições do antigo regime também exigem reformas profundas ou mesmo extinção. O que ainda justifica a existência de burocracias onerosas como o FMI ou o Banco Mundial? Ou o fato de que uma instituição como a UNESCO dependa de critérios ideológicos impostos por Washington para receber financiamento? Quando a UNESCO admitiu a Palestina como membro, Estados Unidos, Reino Unido e Israel se retiraram e cortaram seus aportes — algo que já ocorrera nos anos 1980, sob Ronald Reagan e Margaret Thatcher, e que voltará a ocorrer depois de 31 de dezembro de 2026, conforme anunciado pela Casa Branca. Israel já havia se retirado em 2019, devido à adesão da Palestina à organização.
Os exemplos da inadequação entre o “ordem mundial” e a realidade do sistema internacional são inúmeros. Tentativas de construir uma nova ordem já são visíveis no Sul Global. Os BRICS e seus mecanismos comerciais e financeiros são apenas uma expressão desse processo, que também se manifesta em campos diplomáticos e culturais.
Mas coube a Donald Trump o “mérito” de ter sido quem, de modo mais brutal, decretou — com ações concretas — o fim do velho “ordem baseada em regras” e o início de uma nova era, marcada pela decomposição e anarquia do sistema internacional. Trump não apenas viola normas internacionais, mas se orgulha disso, lançando dúvidas sobre a legitimidade de todo o sistema. A cumplicidade de Washington e da União Europeia com o genocídio praticado por Israel em Gaza feriu um dos princípios centrais da ONU e do Direito Internacional.
Nos últimos dias, o envio de forças navais dos Estados Unidos às águas territoriais da República Bolivariana da Venezuela violou abertamente a Carta da ONU, cujo artigo 2 do Capítulo 1 estabelece que “os membros da Organização, em suas relações internacionais, devem abster-se de recorrer à ameaça ou ao uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”. Além disso, o recente anúncio de Trump autorizando a CIA a realizar “operações letais” na Venezuela e no Caribe, com o objetivo de provocar uma “mudança de regime” e até capturar ou assassinar o presidente Nicolás Maduro, representa o tiro de misericórdia no apodrecido “ordem mundial baseada em regras” exaltado pelo discurso oficial do império.
É urgente criar uma nova ordem jurídica e institucional global. Mas, para que seja bem-sucedida, essa tarefa exigirá um amplo debate, sem exclusões, entre todos os povos e governos, independentemente de seus regimes políticos, em respeito ao princípio da autodeterminação das nações. Se a ONU for incapaz de conduzir esse debate, acabará tendo o mesmo destino de sua antecessora, a fracassada Liga das Nações, que sucumbiu ao início da Segunda Guerra Mundial. E, nesse cenário de caos global e ausência de regras, o espectro de uma Terceira Guerra Mundial começa a se desenhar de forma ameaçadora no horizonte.
Texto original publicado pela Rede de Intelectuais, Artistas e Movimentos Sociais em Defesa da Humanidade.
Tradução livre para o português.