Sergio Ferrari,
Publicado em Rebelión (21/10/2025),

As empresas multinacionais impõem suas próprias regras, o que leva a um endividamento crescente e acumulado para as populações dos países do Sul Global.
O mecanismo de solução de controvérsias entre investidores e Estados, conhecido como ISDS (Investor-State Dispute Settlement), atua como instrumento financeiro para condicionar os governos e perpetuar a dependência internacional dos Estados. As demandas investidor-Estado se multiplicaram nas últimas duas décadas em todos os continentes. De um total mundial de seis casos em 1996, chegou-se a 1.332 até o final de 2023. Significativamente, os países da América Latina foram demandados 380 vezes, representando 28,5% dessas ações (https://isds.bilaterals.org/?-the-basics-&lang=es).
Esse sistema de arbitragem internacional permite que investidores estrangeiros — principalmente grandes corporações transnacionais e fundos de investimento — processem Estados em tribunais internacionais quando consideram que leis, regulamentos, decisões judiciais ou outras medidas de um governo nacional violam as proteções definidas em tratados ou acordos comerciais. Assim, qualquer disputa é julgada fora das jurisdições nacionais.
Os casos são decididos por três árbitros, geralmente juristas ligados ao setor privado e, portanto, tendenciosos a favor das empresas. No caso das demandas contra a Argentina, três escritórios de advocacia se destacam: Freshfields Bruckhaus Deringer, com quinze ações; King & Spalding, com doze; e M. & M. Bomchil, com sete.
Devido aos seus efeitos antissociais, o mecanismo ISDS tem sido amplamente criticado por acadêmicos, organizações civis e movimentos sociais internacionais. As críticas concentram-se na falta de transparência, imparcialidade e independência dos árbitros. Os processos podem ocorrer em qualquer parte do mundo e custam mais do que julgamentos em tribunais nacionais. Além disso, apenas investidores podem iniciar ações desse tipo — enquanto as vítimas de abusos corporativos não têm nenhum meio legal de processar uma multinacional. Uma “justiça” para os poderosos.
Argentina no foco
Durante mais de 20 anos, até 2024, quando foi superada pela Venezuela, a Argentina foi o país com o maior número de processos em tribunais internacionais de arbitragem. É também o país com mais tratados bilaterais de investimento (TBI) na América Latina e Caribe.
Um estudo do Transnational Institute (TNI), em parceria com organizações argentinas como FARN, Observatorio Petrolero Sur e EFTE, afirma que “o país está perdido em um labirinto de arbitragem internacional que lhe custou caro”.
Segundo o relatório, o governo de Javier Milei ampliou os direitos dos investidores com o Regime de Incentivos para Grandes Investimentos (RIGI), uma lei que concede prerrogativas extraordinárias a investidores estrangeiros e nacionais, permitindo que processem o Estado em tribunais internacionais. “As consequências podem ser uma nova onda de ações arbitrais e aumento da dívida externa”, alerta o estudo.
Quase todos os tratados bilaterais de investimento da Argentina — cerca de 46 — foram firmados nos anos 1990 durante o governo de Carlos Menem. Até julho de 2024, o mecanismo beneficiava apenas investidores estrangeiros; com o RIGI, passou também a abranger os nacionais, especialmente nos setores de energia, mineração e hidrocarbonetos (https://isds-americalatina.org/argentina/).
YPF: um caso emblemático
Várias ações contra a Argentina revelam o impacto desse sistema, que fere a soberania nacional. Um exemplo é a Repsol, petrolífera espanhola que comprou a YPF em 1999. Em 2012, o Estado argentino expropriou suas ações para garantir o abastecimento energético, e a empresa respondeu com uma série de ações judiciais, inclusive no Centro Internacional de Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (CIADI), do Banco Mundial.
A Repsol exigia 10,4 bilhões de dólares, mas o governo ameaçou investigar suas dívidas ambientais. Em 2014, houve acordo por 5 bilhões de dólares. No entanto, anos depois, o fundo abutre Burford obteve um ganho de cerca de 16 bilhões de dólares em Nova York, após comprar os direitos de litígio do Grupo Petersen.
O caso YPF mostra como diferentes atores — Repsol, Grupo Petersen e Burford — exploraram os ativos da empresa, retiraram dividendos e depois moveram ações milionárias, drenando riqueza pública e enfraquecendo a capacidade da YPF de cumprir seu papel estratégico.
Números alarmantes do “caso argentino”
Argentina e Venezuela concentram quase um terço das 415 ações contra a América Latina até julho de 2025. A maioria das demandas contra a Argentina decorre da crise de 2002, com o fim da Lei de Convertibilidade, a desvalorização do peso e o congelamento de tarifas públicas. Entre 2002 e 2007, o país foi processado 42 vezes — 20 só em 2003.
De 65 ações contra a Argentina, 26 foram favoráveis aos investidores e 6 ao Estado; 18 terminaram em acordos, geralmente também benéficos aos investidores. O estudo conclui que 86% das decisões resolvidas favoreceram os investidores.
O impacto financeiro é colossal: 53 dessas 65 ações custaram ao Estado 9,33 bilhões de dólares, o dobro do orçamento de educação de 2024.
Entre as empresas demandantes, um terço é dos EUA (22 ações), seguidas por Espanha (10), França (8) e Itália (6). Investidores europeus e norte-americanos somam 92% dos casos.
Os setores mais afetados são energia (19 casos), finanças (11) e saneamento e resíduos (10) — juntos, 61,5% das ações.
A teia arbitral tecida por grandes corporações para sancionar, condicionar e explorar Estados cresceu exponencialmente nas últimas duas décadas. A América Latina, especialmente a Argentina, está presa nesse labirinto — e, com as políticas atuais, corre o risco de permanecer nele por décadas.
Texto original publicado em Rebelión.
Tradução livre para o português.