Fui à Venezuela enquanto os canhões estavam apontados

Fabrizio Verde

15/10/2025

Publicado em Orinoco Tribune (12/10/2025)

Um relato ao nível do chão de uma Venezuela que se recusa a se render — economicamente, militarmente ou moralmente.

Final de agosto. O Mar do Caribe — geralmente um cartão-postal de águas turquesa e tranquilidade de cruzeiros — transformou-se em palco de uma exibição de força ao estilo da Guerra Fria. Os Estados Unidos, num gesto que evoca suas intervenções mais sombrias, posicionaram navios de guerra e um submarino nuclear a poucos quilômetros da costa venezuelana. O pretexto oficial? A “guerra às drogas”. Mas essa acusação é tão antiga quanto o colonialismo: uma narrativa reciclada e sem base, usada há décadas para justificar golpes, sanções e operações de mudança de regime no Sul Global. A mensagem real dispensa tradução: Caracas deve se submeter aos ditames imperiais — ou ser esmagada pela diplomacia das canhoneiras.

Nesse clima de ameaça aberta — enquanto a mídia ocidental insiste em retratar a Venezuela como uma “ditadura falida” à beira do colapso — decidi viajar para lá. Não foi um impulso. Foi um gesto deliberado de solidariedade com um povo que, há mais de duas décadas, enfrenta um cerco incessante: econômico, midiático e militar. Meu voo para Caracas não foi apenas uma travessia de continentes; foi um voto de confiança na Revolução Bolivariana — em sua resistência, organização e no sonho inabalável de uma outra América. A América imaginada primeiro por Simón Bolívar e, mais recentemente, por Comandante Hugo Chávez.

Pousei no Aeroporto Internacional Simón Bolívar, em Maiquetía, numa manhã de agosto escaldante. O ar estava denso — não só pela umidade tropical, mas por uma silenciosa determinação coletiva. Não havia pânico, nem desespero. Em vez disso, um ânimo resoluto tomava as ruas — uma unidade cívico-militar que define o projeto bolivariano. Em toda parte, de murais a cartazes, ecoava o lema: “Pátria ou Morte, Venceremos”. Não se trata de propaganda vazia. É um pacto com a história.

Em Maracay, uma das cidades mais estratégicas do país, testemunhei algo que as redações europeias jamais exibirão: a união cívico-militar na prática cotidiana. Não é encenação — é um tecido social vivo e pulsante. Pelo país, em praças batizadas com o nome do Libertador Simón Bolívar, venezuelanos se alinham voluntariamente para ingressar na Milícia Bolivariana. Não são mercenários nem fanáticos. São estudantes, operários, camponeses, mães e pais — gente comum decidida a defender sua soberania; sim, com armas se necessário, mas sobretudo com consciência política.

O presidente Nicolás Maduro tem sublinhado repetidas vezes essa continuidade histórica. “A Venezuela sempre enfrentou suas batalhas junto com o povo”, recordou recentemente, “ao longo de nossa história gloriosa — e seguimos fazendo o mesmo nesta guerra multifacetada: econômica, política, psicológica”. Ele enfatizou que a doutrina de defesa do país é inequívoca: “Defesa Integral da Nação”. E, se necessário, declarou, o país recorrerá às armas para proteger sua soberania. “A Venezuela tem direito à paz, à soberania, ao seu próprio existir — e nenhum império neste mundo nos tirará isso. Se for preciso passar de formas não armadas de luta para a luta armada, este povo o fará. Pela paz, pela soberania e pelo direito de existir. Colonialismo — nunca mais!”.

Isso não é retórica. É realidade operacional. A mobilização alcança 335 Áreas de Defesa Integral (ADIs) e 15.751 Bases Populares de Defesa Integral (BDPIs) — uma rede que incorpora a defesa nacional ao cotidiano das comunidades. É um modelo único no mundo: a soberania não é terceirizada a um exército profissional apenas, mas confiada a um povo organizado e consciente. Da distribuição de alimentos à vigilância territorial, da resposta a desastres à produção agrícola, o povo é o escudo.

Criada por Hugo Chávez como o quinto componente da Força Armada Nacional Bolivariana, a Milícia materializa sua visão de “democracia participativa e protagonista”, hoje levada adiante por Maduro. O que mais me impressionou foi a normalidade de tudo. Nada de histeria de guerra. Nada de retórica apocalíptica. Apenas uma lucidez serena: a Venezuela está sob ataque — mas está preparada. E não abrirá mão de sua independência.

Entre filas ordenadas de homens e mulheres de todas as idades assinando fichas de alistamento, vi mãos calejadas, olhares firmes e sorrisos genuínos. Naquele instante, compreendi: o verdadeiro escudo contra o imperialismo não é hardware — é a unidade popular.

Aqui, nas ruas de Maracay, não há inferno. Há vida. Luta. Esperança.

Não fiquei como turista, mas como hóspede de uma família venezuelana — do tipo que ocidentais chamariam de “comum”, se por “comum” entendermos pessoas que trabalham, sonham, riem e resistem apesar de tudo. Partilhamos arepas e pabellón criollo, ouvimos música tradicional e, toda quarta-feira à noite, nos reunimos para assistir a El Mazo Dando, o incisivo programa político de Diosdado Cabello — um ritual que une os venezuelanos em reflexão coletiva.

Dois anos atrás, na minha última visita, já havia percebido essa capacidade extraordinária de resistir com alegria e dignidade. Hoje, apesar do aperto das sanções dos EUA, esse espírito não esmoreceu — aprofundou-se. Não há vitimismo, nem resignação. Só uma vontade tenaz de construir, viver, avançar — apesar do que Maduro corretamente chama de “guerra multifacetada” movida pelo imperialismo para apagar o projeto bolivariano.

Num sábado de manhã, acompanhei meus anfitriões a um grande supermercado. O europeu médio, saturado de propaganda dominante, esperaria prateleiras vazias, longas filas, tensão. Em vez disso, encontrei corredores bem abastecidos — com produtos locais, importados, itens de higiene e utensílios domésticos. A loja estava mais movimentada do que o habitual, sim — mas não havia pânico, nem corrida. Apenas pessoas serenas, sorrindo, comprando com confiança. Uma mulher ao meu lado no caixa explicou: “Ontem, o governo depositou um bônus econômico especial no nosso Carnet de la Patria para neutralizar os efeitos da guerra econômica. É uma ajuda focalizada — para famílias com crianças, idosos ou pessoas com deficiência. Por isso hoje todo mundo saiu às compras”.

Pensei sobre isso. Enquanto a Venezuela é estrangulada por sanções ilegais que bloqueiam o acesso ao sistema financeiro global, seu governo não abandona o povo. Protege-o ativamente — com transferências diretas de renda, apoio à produção nacional e garantia de acesso a bens básicos.

Notei, em comparação com minha visita de dois anos, uma notável recuperação do bolívar como moeda funcional da vida diária. Antes, os preços eram frequentemente exibidos em dólares e muitas transações — sobretudo nas cidades — estavam dolarizadas por necessidade. Hoje, a grande maioria dos preços está em bolívares, e a moeda local voltou a ser o meio de troca padrão. Mais impressionante ainda é o uso disseminado de pagamentos eletrônicos em bolívares: por apps bancários, QR codes e, sobretudo, pelo Pago Móvil — o sistema móvel de transferências instantâneas por número de telefone. Vendedores ambulantes, pequenos comércios, até o transporte aceitam bolívares digitais sem atrito. Não é só conveniência — é soberania monetária em ação, uma reafirmação silenciosa porém poderosa de independência econômica frente à hegemonia do dólar.

E pergunto: em que “democracias civilizadas” do Ocidente isso acontece? Na Itália, França ou EUA, milhares dormem nas calçadas. Em Maracay, não vi um único morador de rua. Ninguém agachado em esquinas com placas de papelão. Nenhuma cidade de barracas sob viadutos. Isso não é acaso. É fruto de políticas centradas no ser humano — prova de que, mesmo sob cerco, um Estado pode escolher ficar ao lado do seu povo.

Além disso, a própria Maracay está mais bonita, limpa e organizada do que na minha visita anterior — já então impressionante. Ruas asfaltadas, calçadas cuidadas, parques floridos. Murais coloridos homenageiam Bolívar, Chávez e heróis indígenas como Guaicaipuro. Não há decadência urbana, nem abandono. Muito disso se deve a Joana Sánchez, jovem governadora do PSUV no estado Aragua — uma nova geração de liderança que combina visão com pragmatismo de base. Suas políticas de renovação urbana, produção local e participação comunitária têm gerado resultados palpáveis. Não é “política de fachada” para turista ver — é transformação real, enraizada, impulsionada por conselhos comunais e comunas em todo o país.

Caminhando pelo centro vibrante de Maracay — entre bancas de frutas e crianças brincando nos pátios — apreendi uma verdade simples: a Venezuela não está em crise. Está em luta. E está vencendo — não pelas armas, mas pela dignidade, organização e solidariedade.

Enquanto o Ocidente se afoga em cinismo, desigualdade e decadência moral, a Venezuela — contra todas as probabilidades — avança. Não com a arrogância dos impérios em declínio, mas com a tenacidade silenciosa de povos livres que se recusam a entregar sua soberania. Talvez seja por isso que os EUA temem tanto a República Bolivariana. Sim, cobiçam seu petróleo — isso é evidente. Mas, mais do que recursos, Washington teme o exemplo. Teme que o mundo veja: outro mundo é possível. E que esse mundo está sendo construído aqui — nas ruas de Caracas e Maracay, nas mãos de avós que repartem arepas, nos olhos de jovens milicianos que se alistam não para matar, mas para defender a paz e a soberania.

Assim, a Venezuela tornou-se vanguarda latino-americana na construção de um mundo multipolar — que rejeita a hegemonia do dólar, desafia a dominação unipolar e afirma o direito dos povos de traçar seu próprio caminho. Caracas não está apenas resistindo ao império. Está ajudando a construir o futuro.

Texto original publicado em Orinoco Tribune (Venezuela).
Tradução livre para o português.

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