Argentina: do lawfare ao neocolonialismo fascista

Claudia Rocca

24/09/2025 (Instituto Tricontinental)

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Nos últimos meses, o poder Judiciário tem desempenhado um papel de liderança em nossa região: desde os processos de lawfare orquestrada contra a ex-presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, até as condenações históricas contra ex-presidentes da extrema direita, como Álvaro Uribe Vélez na Colômbia e Jair Bolsonaro no Brasil. No entanto, vale esclarecer que, ao contrário do que a grande imprensa tenta retratar sobre a semelhança dos casos – lawfare com aqueles levados à justiça por crimes comprovados –, os dois respondem a naturezas muito distintas. Para melhor compreender a guerra jurídica como uma estratégia imperialista em Nuestra América, pedimos a Claudia Rocca, da Associação Americana de Juristas, uma contribuição para este debate.

Os processos de lawfare são uma guerra política por meios jurídicos e midiáticos, que responde a interesses econômicos, políticos e geopolíticos. Envolve juízes, promotores, empresas de mídia, jornalistas e formadores de opinião, policiais, funcionários de embaixadas e agentes de inteligência, tanto locais quanto estrangeiros. Caracteriza-se pelo abuso de prisão preventiva, acordos de delação premiada e vereditos fabricados sem o devido processo legal, por meio de assédio e desmoralização pela mídia. Inclui invasões a escritórios políticos e casas de militantes, perseguição e ameaças contra familiares, forçando-os ao exílio e ao refúgio político, além de manipulação e disseminação do medo entre os envolvidos em certos processos políticos.

Nos últimos anos, essas táticas foram usadas na Argentina, no Equador, no Chile, no Brasil, na Bolívia, no Peru e em El Salvador contra dezenas de líderes políticos e/ou ex-funcionários de governo, programas ou projetos que desafiam a ortodoxia neoliberal em maior ou menor grau.

Essa guerra opera “desde cima”, por meio de um aparato jurídico que se coloca acima dos poderes Legislativo e Executivo, ampliando o escopo de manobra e poder dos juízes, que se envolvem em operações políticas, e desencadeia uma perda de equilíbrio entre os poderes, permitindo uma crescente “juristocracia” e, em muitos casos, normalizando o duplo padrão da lei. Esse processo histórico de reposicionamento do Judiciário acima de todos os outros é característico do neoconstitucionalismo, a ordem jurídica predominante em grande parte da Europa e da América Latina nas últimas décadas.

A exaltação do Judiciário e a seletividade em casos judiciais articulam-se com o protagonismo da mídia, que opera para criminalizar setores ou lideranças políticas. Soma-se a isso as vozes de “especialistas”, muitos ligados a think tanks nos Estados Unidos, aos quais é atribuída uma suposta veracidade na grande mídia e nas redes sociais.

É impressionante o papel desempenhado por agências governamentais dos Estados Unidos, como a Usaid, e por interesses do setor privado estadunidense. Ambos estão envolvidos tanto nos processos judiciais quanto nos resultados e eventos que os seguem, demonstrando a instrumentalização do aparato judiciário-midiático em favor de objetivos econômicos, políticos e geopolíticos estrangeiros, que compartilham interesses e negócios com minorias privilegiadas locais.

Mas esse mecanismo não se limita à esfera doméstica. Para as nações em que a potência econômica ocidental não conseguiu minar os processos políticos nacionais e soberanos, os mesmos remédios são aplicados por meio do sistema internacional de fluxos cambiais, tarifas e rotas comerciais, sistemas de prevenção à lavagem de dinheiro, sistemas de controle de imigração, sanções e medidas coercitivas unilaterais, com acusações baseadas exclusivamente em decisões de órgãos administrativos, ou seja, em decisões meramente políticas da administração estadunidense.

Várias publicações do âmbito militar consideram que o lawfare é um dos componentes das novas guerras “não convencionais”, como a guerra híbrida. Guerra que pode ser exercida por atores estatais ou não estatais, que atuam com todas as modalidades do espectro desse tipo de guerra, considerando as capacidades militares convencionais, táticas e unidades de combate não convencionais, ou mesmo ações terroristas, planejamento do caos por meio de atos de violência, guerra cibernética, guerra financeira ou midiática.

Basta invocar o caráter “não legal” das leis e normas de outros Estados, que não se ajustam ao cânone ocidental, para que sejam classificadas como violentas (“ameaça incomum e extraordinária”), pretendendo assim legitimar ataques que hoje assumem múltiplas dimensões.

Embora, como já dissemos, o lawfare seja uma ferramenta utilizada pelo Estado, pelo governo ou por minorias privilegiadas a nível local, a nível internacional ele é implementado a partir do Norte Global.

Para as nações subjugadas, esse é o cerne das relações coloniais e da dependência exacerbada com a expansão do capitalismo. No âmbito dessa relação desigual, os Estados Unidos e seus aliados reorganizam o cenário em favor dos interesses de uma rede internacional de poder, criando uma espécie de “ordem jurídica legítima”, definindo o alcance de sua jurisdição e ignorando a soberania dos Estados mais fracos, que não têm capacidade de impor sua lei pela força ou de exercer resistência.

A jurisdição não é simplesmente uma regra, mas determina quais regras serão aplicadas, onde, como e por quem. É aí que reside o poder de subjugação do centro de poder ocidental sobre nossos países latino-americanos, veiculado por meio do lawfare.

A instalação dessa “juristocracia” teve como consequência a judicialização da política e da democracia pois, ao deslegitimar e neutralizar líderes políticos incômodos para certos interesses econômicos e geopolíticos, não só afetaram os indivíduos diretamente envolvidos, mas também minaram as bases democráticas dos Estados afetados, comprometendo sua capacidade de autodeterminação e promovendo a subordinação a agendas externas.

O caso argentino

A perseguição judicial dos líderes políticos e sociais na Argentina vem ocorrendo desde o final do último mandato do governo de Cristina Kirchner, quando começaram a ganhar destaque figuras que apareciam na mídia denunciando a suposta corrupção dos funcionários kirchneristas, sem argumentos probatórios, mas com grande espetacularidade e impacto proporcionados pelos grandes meios de comunicação. Os ataques tinham como epicentro especial a figura da primeira-dama, chegando até mesmo a instalar a ideia de que ela era a autora intelectual da morte do promotor Nisman, apesar de todas as provas coletadas na investigação terem concluído que se tratava de um suicídio.

O Foro Penal Federal, juntamente com outros altos funcionários do poder Judiciário, tornou-se o principal partido da oposição. Esse processo foi determinante para a vitória de Mauricio Macri, cuja gestão mergulhou o país em um processo de desindustrialização, concentração de riqueza por meio da especulação financeira, entrega de recursos estratégicos e enfraquecimento da capacidade do Estado, enquanto as causas que criminalizavam o kirchnerismo e os líderes sociais do campo popular multiplicavam-se. Milagro Sala é o exemplo mais paradigmático. Na última parte de seu mandato, Macri contraiu em tempo recorde uma dívida formidável. Os quase 50 bilhões de dólares concedidos pelo FMI de forma absolutamente irregular fazem parte do montante que fugiu do país posteriormente.

Um dos casos emblemáticos é, sem dúvida, o chamado caso “Vialidad”, no qual Cristina Kirchner foi condenada a seis anos de prisão pelo crime de administração fraudulenta. No âmbito desse processo, foram violadas as garantias de defesa em julgamento, decorrentes do artigo 380 do Código de Processo Penal da Nação, com base no artigo 18 da Constituição Nacional e reforçadas pelos tratados que compõem o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Também foram violadas as regras de conduta judicial conhecidas como Princípios de Bangalore, dadas a pública e notória falta de imparcialidade do juiz e suas ligações evidentes com o Ministério Público. Na arbitrariedade judicial manifestada nos procedimentos seguidos contra a vice-presidenta, observam-se os mesmos padrões persecutórios políticos de outros líderes latino-americanos, e isso é claramente visível a partir de uma sentença que nada tem a ver com as provas apresentadas no processo, em que não foi incorporado nenhum elemento que comprove as condutas atribuídas à ex-mandatária.

Após a confirmação por parte da Câmara de Cassação — que não atendeu a nenhum dos argumentos acima mencionados —, em apenas dois meses a Suprema Corte de Justiça confirmou a condenação, enquanto outros processos aguardam anos e até décadas. Com o já habitual anúncio prévio e preciso da mídia, a decisão inconstitucional alcançou o objetivo estabelecido desde o início: a proscrição de Cristina.

Podemos afirmar que o lawfare foi um fator central na ascensão ao governo de Javier Milei, uma figura com características sinistras, impulsionada e sustentada por três centros de poder econômico: o financeiro especulativo e de investimento em recursos estratégicos (como o JP Morgan, BlackRock e outros), os grupos denominados “senhores tecnofeudais” — senhores das redes — e os meios de comunicação.

Desde sua posse, Milei levou adiante um processo de desmantelamento do Estado; o esvaziamento das políticas públicas para o desenvolvimento, direitos humanos, inclusão, gênero e diversidade; a devastação econômica; a implantação de medidas repressivas com a expansão das forças e órgãos de segurança, destinadas a silenciar os protestos sociais diante do desmonte de um sistema estatal de proteção efetiva dos direitos econômicos, sociais e culturais; e o empobrecimento brutal da população.

Houve demissões em massa, enquanto empresas, recursos estratégicos e outros bens públicos foram privatizados. A tentativa de suprimir os direitos trabalhistas, combinada com a perseguição a organizações sindicais, sociais e da economia popular — denúncias criminais, retirada de alimentos e outros benefícios garantidos por programas sociais que foram abruptamente descontinuados — revelam um projeto político de acumulação pelos setores mais abastados da economia e da especulação financeira. No contexto de um processo inflacionário, devido à desregulamentação de fatores econômicos essenciais, como serviços, benefícios e preços em geral, ocorreu uma perda abrupta do poder de compra dos salários e um aumento do desemprego e da pobreza.

Em 2024, as pequenas e médias empresas registraram uma perda de mais de 217 mil postos de trabalho e o fechamento de 9.923 empresas, segundo informações da Industriales Pymes Argentinos (IPA). Os setores mais afetados foram a construção civil e a indústria, com 69.738 e 25.186 postos a menos, respectivamente. No setor público, entre novembro de 2023 e maio de 2025, foram eliminados mais de 180 mil postos de trabalho. Houve um aumento do trabalho informal e de condições análogas à escravidão.

Houve uma contração do consumo de maior magnitude tanto nas vendas de supermercados e lojas de conveniência quanto no comércio varejista de diversos setores. Em 2025, a inflação está diminuindo apenas como resultado de uma recessão econômica sem precedentes e da deterioração de todos os fatores. As consequências em termos humanos são hoje evidentes e alarmantes.

Esse acelerado processo de devastação foi acompanhado por uma prática e retórica fascista, com desprezo pela condição humana, uma concepção supremacista, patriarcal e a mais servil e indigna submissão aos interesses dos Estados Unidos e ao governo genocida sionista de Israel, vociferado pelo presidente argentino.

Para concluirmos, poderíamos tentar, nesta altura, uma definição do fascismo no século XXI como uma prática social que se manifesta por meio de movimentos políticos impulsionados pelo novo poder econômico dominante no Ocidente, que utilizam o ódio e a polarização como estratégias para minar a democracia liberal, romper a ordem social e o Estado de Direito. Assim, instalam regimes autoritários e nepotistas, com programas econômicos que promovem processos acelerados de concentração de riqueza em benefício de grupos transnacionais aos quais respondem, favorecendo a especulação financeira. As consequências são a destruição das organizações sociais, a exclusão de grandes maiorias, a devastação econômica e a repressão como método de controle social.

O exemplo argentino — como tantos outros — nos mostra que a submissão ao atual poder econômico ocidental representado pelos Estados Unidos só traz consequências infinitamente mais trágicas do que o custo de resistir a ele. Não há nenhum benefício nem misericórdia: isso nos deixa sem horizonte e sem futuro. Por isso, ceder ou se submeter não é opção para um povo soberano.

Saudações a todos e todas,
Claudia Rocca

Texto original publicado pelo Instituto Tricontinental.

https://thetricontinental.org/pt-pt/argentina-lawfare-neocolonialismo

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