Tragédias de uma sociedade sem Estado

Atilio Boron
02/01/2025 (Página 12)

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O brutal experimento econômico em que a Argentina está mergulhada não apenas empobrece rapidamente a maior parte da população (ainda que as manipuladas cifras oficiais queiram nos fazer acreditar no contrário), como também está forçando muitas empresas a fecharem suas portas — não apenas as pequenas — e provocando o colapso da atividade nos setores mais intensivos em mão de obra, como a construção civil, por exemplo. No seu desvario ideológico, o alucinado profeta que nos governa e seus pérfidos conselheiros empenham-se em destruir o Estado, justificando essa conduta com base nas elucubrações de alguns economistas que jamais foram levados a sério por qualquer governo, ou pelos CEOs das principais empresas, para os quais os subsídios estatais, as isenções fiscais e as compras de um setor público vigoroso (como as de armamentos) são a garantia dos lucros extraordinários de suas corporações e das fenomenais remunerações que recebem, medidas em dezenas e até centenas de milhões de dólares por ano.

A remuneração média dos CEOs das 500 maiores empresas, segundo a Standard & Poor’s, foi de quase 18 milhões de dólares anuais, havendo um grupo de privilegiados que se aproxima dos 200 milhões. Por isso, sorriem com condescendência ao ouvir Milei dizer que vai destruir o Estado — justamente aquele que lhes assegura os ganhos extraordinários de suas empresas e os fabulosos salários com que são recompensados seus executivos.

O extremo ideologismo do funcionalismo mileísta é algo inédito, mesmo num país tão propenso às exagerações como a Argentina. “Sou o toupeira que destrói o Estado por dentro” é uma daquelas frases do presidente que os manuais de história econômica incluirão em suas listas das maiores aberrações já enunciadas por um economista e, ao mesmo tempo, chefe de Estado.

Em uma entrevista concedida ao site norte-americano The Free Press, Milei detalhou ainda mais e disse, textualmente: “É como estar infiltrado nas fileiras inimigas; a reforma do Estado deve ser feita por alguém que odeie o Estado, e eu odeio tanto o Estado que estou disposto a suportar todo tipo de mentiras, calúnias e injúrias — tanto sobre minha pessoa quanto sobre meus entes mais queridos, que são minha irmã, meus cães e meus pais — contanto que eu destrua o Estado.”

Frase inquietante, pois revela que o que orienta a política econômica do país não é uma serena avaliação racional das condições em que se desenvolve a economia argentina, mas sim um trauma psicológico do eventual ocupante da Casa Rosada: seu ódio visceral ao Estado. Nem Margaret Thatcher nem Ronald Reagan chegaram a dizer algo sequer remotamente semelhante ao que disse Milei. Ambos eram políticos conservadores, levavam a sério a função de governar e sabiam que o Estado era um instrumento essencial para apoiar as empresas privadas, promover o crescimento econômico e garantir a estabilidade da ordem social.

Milei, ao contrário, é um iluminado que busca reviver um mundo que nunca existiu: um capitalismo de mercados totalmente livres, sem Estados que interfiram com regulações ou leis. Tal coisa existe apenas em sua imaginação — e na de alguns de seus discípulos. A ignorância que exibe nesse assunto é assombrosa. Alguém de seu entorno deveria lembrar-lhe que o gasto público em relação ao PIB nos países do G7 varia entre 42% (Japão) e 58% (França). Já no Gabão, um dos países mais pobres da África, esse número é de 23%, e no Burundi e no Sudão do Sul é ainda menor.

É para lá que as políticas de Milei nos conduzem — não para aqueles paraísos que supostamente alcançaríamos após atravessar o tenebroso “vale da transição” durante 35 ou 40 anos. Esse filme, lembremo-nos, já vimos durante o menemismo — e sabemos como terminou.

Mas não é essa — a do toupeira — a única frase que revela a barbárie intelectual e política do atual elenco governante. O cruzado da desregulamentação, Federico Sturzenegger, cunhou outra pérola histórica ao afirmar que “para cada necessidade haverá um mercado”. Frase insanavelmente equivocada à luz da história econômica mundial — e que, no entanto, Milei qualificou de “genial”.

Além disso, tal enunciado revela uma imoralidade imperdoável, ao converter as necessidades humanas — saúde, educação, abrigo, bem-estar — em mercadorias a serem transacionadas no mercado. Se Sturzenegger tivesse razão, por que, nesta cruel Argentina anarcocapitalista, não se formou um mercado para prover medicamentos oncológicos às dezenas de pessoas que morreram por essa causa? E por que, se o governo reduziu drasticamente a distribuição de medicamentos gratuitos, os laboratórios farmacêuticos, longe de competirem entre si, conspiram para aumentar seus preços — como Adam Smith já advertira em A Riqueza das Nações?

É evidente que essas extravagâncias teóricas não são inocentes. Não creio que Milei ou Sturzenegger sejam tão ignorantes a ponto de desconhecer o que se ensina nas primeiras aulas de qualquer curso de história econômica. Na realidade, esses disparates pseudoteóricos têm como função justificar o redobrado saque que a classe capitalista pratica sobre a sociedade argentina. Seria ingênuo supor que estamos diante de um debate no campo das ideias.

Octavio Paz advertia sobre a necessidade de distinguir as ideias — ou seja, construções intelectuais finamente elaboradas e sustentadas por dados da experiência — das simples “ocorrências” que podem brotar da cabeça de um neófito ou de um publicista a serviço de uma causa indefensável. A destruição do Estado e a “magia” dos mercados são meras ocorrências que servem de pretexto para uma política que favorece o grande capital e afunda na miséria e na exclusão social a imensa maioria da população.

O Estado que Milei destrói alegre e irresponsavelmente — em contramão da realidade dos capitalismos desenvolvidos — é o mesmo que desafia uma ordem judicial dirigida ao Ministério do Capital Humano, para que entregue os alimentos sob sua guarda a refeitórios e merendeiros populares. Crueldade diante dos flagelos da pobreza e irresponsabilidade absoluta do governo, pois, onde o Estado se retira, destruído pela “toupeira vingadora”, surge o narcotráfico para oferecer o que as autoridades insistem em reter.

Esse fenômeno já é perceptível em algumas favelas dentro da própria cidade de Buenos Aires e na Grande Buenos Aires — agravando ainda mais a situação social desses setores, pois não só será preciso combater a pobreza, mas também desalojar o narcotráfico.

Expressões como as já mencionadas são meras coartadas destinadas a disfarçar o caráter ferozmente antipopular — e até racista — do projeto do capital mais concentrado do país e de seus sócios estrangeiros, que o governo de La Libertad Avanza pôs em marcha.

São pérfidas consignas de uma batalha cultural orientada a criar as condições para instaurar o “darwinismo social de mercado”, que consagra a sobrevivência dos mais aptos e a submissão dos pobres e vulneráveis — desarmados ideologicamente pelos meios de comunicação e pelas redes sociais controladas pelo grande capital e seus representantes no governo.

Os vencedores nesse combate desigual que se trava quando o Estado abdica de sua função arbitral nunca são os melhores, os mais justos, patriotas e virtuosos — mas sim aqueles dispostos a cometer qualquer crime ou delito, contanto que “aumentem o tamanho de seus bolsos”. E é exatamente isso o que o regime de Milei se propôs a fazer — segundo sua própria confissão.

Texto original publicado no jornal Página 12 (Argentina).
Tradução livre para o português.

https://www.pagina12.com.ar/794219-tragedias-de-una-sociedad-sin-estado

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